Dos procedimentos

Os diferentes procedimentos utilizados pelos grupos na Intervenção Urbana são pensados para produzir certos efeitos, mas estes nunca podem ser previstos, programados ou antecipados, pois é na atualidade da ação que a intervenção acontece desde o momento em que começa a ser elaborado .

Em O Corpo – pistas para estudos indisciplinares, Greiner (2005) propõe que o corpo muda de estado cada vez que percebe o mundo. “(...) desta experiência nascem metáforas imediatas e complexas que serão, por sua vez, operadoras de outras experiências sucessivas, prontas a desestabilizar outros contextos (corpos e ambientes) mapeados instantaneamentes de modo que o risco tornar-se-á inevitavelmente presente.”5.

Na Intervenção Urbana, entra em jogo a disposição de alguns trabalhos para questionar certos princípios normativos da linguagem usual e para recolocá-los em um outro alinhamento, imprescindível ao entendimento conceitual e à expansão da linguagem. Ao abrir espaço para tal possibilidade, a prática da Intervenção Urbana reforça a noção de um pensamento engajado em suas multiplicidades de apreensão e transformação da realidade com avanço expressivo em novas vias de contato e interatividade com o público.

A atuação dos diversos grupos de Intervenção Urbana vem de encontro a uma produção cultural pluralística, trabalhando em um campo de intersecção entre o político, o social e o estético. A heterogeneidade que fundamenta a organização desses grupos e a própria hibridrez assumida como linguagem desloca-os de um lugar categórico dentro do panorama cultural para borrar seus limites no que se refere às temáticas introduzidas e aos modos de criação, o que nos leva a pensar no conceito de ambivalência delineado pelo sociólogo Zygmunt Bauman.

O ritmo irrefreável das metrópoles, a corrida ao consumismo, as injustiça sociais, as precariedade das condições de vida, a falência do Estado, o desaparecimento de espaços de lazer e cultura, a degradação da pólis como local do encontro, da troca e da convivência democrática, entre tantos outros, são temas de relevância para a produção artística neste contexto. Tudo aquilo que de alguma maneira é inclassificável, segregado, deportado, excluído ou invalidado pelo senso comum, é abarcado pela Intervenção Urbana.

Em Modernidade e Ambivalência, Bauman (1999) destaca o esforço da modernidade em eliminar a ambivalência em um mundo calcado na necessidade da ordenação. É justamente desta ambivalência que alguns grupos de Intervenção Urbana retiram sua matéria de trabalho, valendo-se de linguagens múltiplas, tais como, elementos oriundos das artes visuais, do teatro e das artes do corpo. Deste modo, podem assim fazer emergir uma polissemia de sentidos quando interferem diretamente no que seria a “realidade consensual”.

Menos do que buscar respostas ou incorrer em armadilhas classificatórias, a prática da Intervenção Urbana busca instigar novas leituras. Trata-se de um terreno onde as linguagens artísticas vão estabelecer conexões entre si para criar permutas que potencializem cargas expressivas e fomentem novas apropriações da realidade.

Para efeitos de ilustrar a diversidade empregada em diferentes procedimentos na Intervenção Urbana, fizemos um recorte de trabalhos dos grupos Bijari, EIA e Matilha, todos atuantes em São Paulo. Dentro dos procedimentos utilizados, observamos uma grande variedade de técnicas, linguagens e objetivos, de modo que não podemos classificá-los de forma homogênea.

Um exemplo de trabalho em que predomina o caráter lúdico é o do EIA - Experiência Imersiva Ambiental que estende faixas de grama sobre as faixas de pedestres. A proposta constrói um jogo poético entre o público e a obra, sem que o artista represente o lugar do “saber”, mas antes figure como agente da experiência de uma arte ambiental como cita Jô Takahashi (2003) ao analisar relações entre arte e espaço público. “(...) o artista abre mão do domínio de sua obra, desarma-se do discurso. O observador, a partir de seu repertório, interage com a obra e constrói com o artista a trama lúdica e poética” 6.

O grupo Bijari em uma de suas intervenções,, solta uma galinha em um largo popular e depois na entrada de um shopping center para analisar reações distintas. A ação serve de exemplo para ilustrarmos a transposição de contextos a partir de um “elemento disparador”. No largo popular, a galinha representa o alimento, a “janta”, e na entrada do shopping center é uma ameaça à ordem e à higiene local, tendo sido acionado um segurança para retirá-la dali.

“Show Room”, do grupo Matilha, leva às ruas protótipos de abrigos para moradores de rua construídos com placas de empreendimentos imobiliários, numa inversão da natureza dos objetos, que permite a discussão da especulação imobiliária em oposição às lutas pelo direito à moradia popular.

Em “Liberte-se”, também realizado pelo Matilha (parceria feita entre a Cia.Cachorra e A Revolução Não Será Televisionada), balas deflagradas de revólver são vendidas nos semáforos da cidade, em uma ação mimética (a venda de balas como alternativa de ganhar a vida) usada para discutir questões como desemprego e violência. Aqui, os elementos escolhidos utilizam de uma linguagem irônica, ao valer-se do trocadilho das balas para discutir a realidade.

Analisando estes trabalhos aqui apresentados, concluímos que a partir do conceito de Corpomídia, pode-se elucidar as implicações entre a criação, o ambiente e o público, em uma vertente artística que encontra sua riqueza justamente na hibridação e na multiplicidade que isso propicia. Embora os procedimentos e as técnicas utilizadas sejam diferentes e ocorra em alguns casos um predomínio de certas linguagens sobre outras, existe na prática da Intervenção Urbana uma interferência corpórea constante tanto nos sujeitos que atuam quanto nos que interagem.